A tributação dos aluguéis mudou — ou pelo menos ameaça mudar
Aprovada sob a promessa de simplificar um dos sistemas mais caóticos do planeta, a reforma tributária brasileira, consolidada na Lei Complementar 214/2024, trouxe mais do mesmo: siglas novas para velhos problemas. A substituição de uma infinidade de tributos por dois impostos — IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) — soa como alívio, até se olhar de perto. A mudança parece ignorar, mais uma vez, a realidade de quem trabalha, empreende e aluga imóveis no Brasil.
O artigo 251 e os dois critérios que acendem o alerta
O ponto mais sensível para o mercado de locações está no Art. 251 da LC 214, que trata da incidência do IBS e CBS sobre rendimentos de pessoas físicas provenientes de aluguéis.
Segundo o artigo, a tributação só se aplica se forem preenchidos dois critérios cumulativos:
a) a receita total com essas operações exceda R$ 240.000 (duzentos e quarenta mil reais); e
b) tenham por objeto mais de 3 (três) bens imóveis distintos;
Em outras palavras, a locação ser realizada com estrutura empresarial ou profissional E a receita da pessoa física ultrapassar o limite de isenção previsto para pessoas jurídicas de pequeno porte.
Lembre-se, é necessário cumprir os dois requisitos, um só não basta, ou seja, o mero fato de uma pessoa física alugar imóveis não é, por si só, suficiente para que incida IBS ou CBS. Mas a combinação de volume e estrutura — como ter vários imóveis gerenciados por empresa terceirizada, por exemplo — pode acionar esse gatilho.
É nesse ponto que a interpretação da Receita Federal será determinante. E como sabemos, a Receita tende a enxergar estrutura empresarial em qualquer movimentação mais robusta. É o tipo de brecha que vira armadilha, embora a lei pareça ser clara quanto ao volume e ao valor.
A figura da imobiliária: gestora, prestadora ou risco fiscal?
Se a imobiliária administra os imóveis de uma pessoa física com autonomia e organização, ela corre o risco de ser enquadrada como prestadora de serviço profissional, tornando a operação passível de tributação para o proprietário. Isso traz uma dúvida legítima: onde termina a intermediação e começa a estrutura empresarial?
Por isso, é essencial que a imobiliária deixe claro, em contrato e na prática, que atua como mandatária, sem tomar decisões comerciais ou operacionais em nome do locador. Quanto mais a imobiliária parecer empresa do proprietário, mais ela o aproxima da malha fina da reforma.
PJ locando para PJ: o risco da bitributação camuflada
Um cenário ainda mais sensível é quando um proprietário pessoa física loca para uma empresa (inquilino PJ). Nessa configuração, o risco de interpretação fiscal como atividade empresarial é elevado — principalmente se os contratos forem recorrentes, longos ou se houver intermediação com padrão corporativo.
É o típico caso em que o Estado, mesmo sem produzir nada, se arroga o direito de tributar duas vezes: o inquilino paga impostos sobre sua atividade e o proprietário pode ser tributado como se fosse empresa, só porque alugou para uma.
O falso discurso da simplificação e o verdadeiro peso da máquina
A reforma se vende como modernização. Mas quem vive no mundo real sabe que o sistema tributário brasileiro é um emaranhado punitivo, onde o erro custa caro e a dúvida é penalizada. A LC 214 não rompe com esse vício — apenas o reorganiza. IBS e CBS podem até substituir tributos anteriores, mas carregam consigo o mesmo espírito: centralizador, confuso e faminto.
Num país onde ser produtivo é quase um ato de resistência, o proprietário que aluga um bem construído com suor é agora potencialmente enquadrado como se fosse uma incorporadora. E a imobiliária, se não tomar cuidado, vira cúmplice involuntária da sanha arrecadatória.
O que a imobiliária deve fazer agora
Frente a esse cenário, a imobiliária profissional precisa ir além da operação. Deve se tornar consultora de risco tributário, orientando o proprietário a:
- Revisar a titularidade dos imóveis e contratos;
- Avaliar o volume de receita em comparação ao limite da lei;
- Formalizar corretamente os contratos de administração;
- Distinguir claramente entre intermediação e estrutura empresarial.
Mais do que nunca, atender bem não é só uma questão de eficiência, mas de proteção fiscal.
Uma oportunidade de liderança no caos
A reforma, com todas as suas lacunas e perigos, abre também uma janela rara: a de mostrar ao mercado que a boa gestão de aluguéis protege, orienta e educa. Que não estamos aqui apenas para intermediar boletos, mas para construir uma relação ética com o patrimônio do cliente — inclusive frente ao Estado.
A imobiliária que entender isso cedo sairá na frente. Porque num país onde até alugar virou problema fiscal, a lucidez virou diferencial competitivo.